POR CRISTINA TARDÁGUILA para O GLOBO 07/02/2015
Produtores culturais, advogados especializados em leis de fomento e estudiosos da Cultura receberam com apreensão a informação de que o ministro da cultura, Juca Ferreira, pretende ir ao Senado para tentar reduzir de 100% para 80% o teto de renúncia fiscal permitida a empresas que investem em projetos culturais. Apesar de haver no meio artístico um consenso de que a Lei Rouanet, criada em 1991, já está defasada, teme-se que o movimento de Juca dificulte ainda mais a obtenção de financiamento e que não solucione uma das principais distorções da lei vigente: a concentração de recursos no eixo Rio-São Paulo. Ontem, em entrevista no GLOBO, o ministro disse que pretende alterar o projeto de lei que institui o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Procultura), principal aposta para substituir a Rouanet. Do jeito que está, o texto, aprovado pela Câmara dos Deputados em 2013 e atualmente à espera de avaliação do Senado, mantém a possibilidade de 100% de renúncia. O ministro diz, no entanto, que o limite máximo para a dedução deve cair a 80%. O valor restante (pelo menos 20%), Juca pretende destinar ao Fundo Nacional de Cultura (FNC), para apoiar outros projetos, que atendam aos interesses da política cultural do governo. — Mexer nos 100% é um tiro no pé — diz Ricardo Ohtake, diretor geral do Instituto Tomie Ohtake. — Se tirarem isso, as empresas vão começar a optar por outras leis. Há uma no esporte, uma para criança e adolescente, e a do Audiovisual, voltada para o cinema (e dá até 125% de renúncia). Só dá para mexer nos 100% se todas elas forem reduzidas também. Senão, pode-se reduzir, e muito, a atividade cultural. Só aqui no instituto, 60% dos nossos projetos dependem da Rouanet. ‘OVO DA SERPENTE NEOLIBERAL’ Assim como Ricardo Ohtake, Paulo Vicelli, diretor de relações institucionais da Pinacoteca do Estado de São Paulo, entende que a lei vigente precisa ser aperfeiçoada, mas acredita que Juca Ferreira está “um tom acima” em suas críticas. Numa entrevista concedida pela internet no último dia 29, o ministro chegou a classificar a Rouanet como um “engodo” e como “o ovo da serpente neoliberal”. — A Lei Rouanet sempre foi muito boa para a gente. Entendemos que ela tem idade, que precisa ser aperfeiçoada, mas 40% do nosso orçamento vem dela. Toda a programação da Pinacoteca é fruto de captação. Então, qualquer movimento que a altere é um risco, pode afastar patrocinadores. Segundo Vicelli, a exposição de Ron Mueck, que foi inaugurada em 20 de novembro, já levou 280 mil visitantes à instituição. E, até o dia 22, quando chega ao fim, deve bater a marca de 300 mil, estabelecendo um recorde. Sem a Lei Rouanet, diz ele, a mostra “seria impossível”. — Essa exposição prova que não dá para ser cartesiano na análise de que a Rouanet concentra recursos. Ron Mueck obviamente está formando novos públicos aqui em São Paulo e está sendo visitada por muita gente de outros estados que veio passar as férias na cidade. Também temos seus subprodutos. O catálogo foi enviado para bibliotecas públicas em Belém, Mato Grosso... Precisamos levar esse lado em consideração também. A produtora cultural Paula Lavigne vai na mesma linha. Critica a Lei Rouanet por “misturar indústria cultural com fomento”, mas questiona se a redução do teto de renúncia fiscal solucionará os problemas vigentes. PUBLICIDADE — Não sei se esse movimento vai resolver a centralização dos investimentos no eixo Rio-São Paulo. Enquanto não dividirem as turmas, pondo de um lado o que é indústria cultural e do outro o que é fomento, isso continuará se repetindo. As coisas acontecem no Rio e em São Paulo. Fora isso, se a ideia é fazer caixa para o Fundo Nacional de Cultura, não seria melhor lutar para aumentar o orçamento (da pasta)? Produtor de musicais como “Elis” e “Chacrinha” e um dos sócios da feira ArtRio, Luiz Calainho diz que gostaria de discutir novos formatos. — Estou sempre pronto a debater aprimoramentos das leis de incentivo vigentes. Elas tiveram, e têm, um papel fundamental para atrair a atenção das empresas para o setor, que, sem dúvida, tem apresentado nos últimos cinco anos importante crescimento de excelência e produção. Rudifran Pompeu, que preside a Cooperativa Paulista de Teatro, está no grupo dos que apoiam a iniciativa do ministro, acusando a Rouanet de provocar “uma distorção”. — Nós fechamos com o Juca. O país inteiro contribui com impostos, e Rio e São Paulo se privilegiam. É uma parceria público-privada em que o povo entra com o dinheiro, e a empresa determina o que é cultura. Somos contra tratar desiguais como iguais. Mas, de olho no cenário político nacional, agitado por ajustes econômicos e por casos de corrupção, Pompeu teme que Juca “se frustre”: — Ele está num xadrez e vai precisar da sociedade civil organizada para se fazer ouvir. Da nossa parte, prometemos uma efervescência, mas ele tem que sair do gabinete e ouvir as necessidades do povo. ‘PREGANDO NO DESERTO’ Professor de Gestão da Cultura na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Manoel Marcondes Neto diz que entende as motivações do ministro. Lembra que 85% do que é captado pela Rouanet fica entre Rio, São Paulo e Brasília e que, no primeiro governo Dilma Rousseff, 3% dos proponentes receberam 50% das verbas incentivadas — o que, segundo ele, seria motivo suficiente para encampar uma mudança. Mas Marcondes Neto vê “um Juca Ferreira pregando para ser ouvido no deserto” do Congresso: — Não temos pessoas identificadas com a cultura no Senado. Com os problemas de corrupção que foram revelados, ninguém vai ligar para o setor neste ano. Para ter êxito, Juca precisa se articular politicamente e buscar um cruzado, alguém que tope lutar pela cultura em seu nome. E, enquanto isso não acontece, ele não pode demonizar a lei que segura a cultura nacional desde 1991. A advogada Cristiane Olivieri, especialista em políticas culturais, diz que “é muito simples criticar a Lei Rouanet, estando apoiado por um grupo de pequenos produtores” e faz uma ponderação curiosa sobre possíveis alterações no sistema de fomento via renúncia fiscal: — Não adianta torturar o gato. Ele não vai latir. A lei (de renúncia) não vai pagar projetos pequenos. O que vemos parece vingança dos pobres contra os ricos. Duvido que o governo, com toda sua burocracia, faça com esse dinheiro o que as empresas fazem com a Rouanet. Nos bastidores do Ministério da Cultura, que ainda vive a transição da gestão Marta Suplicy, há quem lamente o abalo numa lei que destinou R$ 1,3 bilhão para o setor, frente aos R$ 80 bilhões disponíveis para renúncia em outras áreas.