"Uma tempestade perfeita": assim o professor de economia da cultura da UFRGS e da Queen Mary University de Londres, Leandro Valiati, define o cenário da indústria cultural no Brasil com a chegada dos impactos do coronavírus. No mercado global a perda já é estimada em U$ 5 bilhões e a tendência é que aumente. Já por aqui ainda não há números para expressar esse abalo.
Porém, Valiati enfatiza que a pandemia atinge a espinha dorsal da sustentabilidade econômica da cultura no país: o público. Em um cenário com carência de políticas públicas e ataques do governo ao setor, o cancelamento de feiras, shows e queda na frequência em salas de cinema podem agravar a já crítica realidade dessa área.
Como o senhor analisa o impacto do coronavírus no industria da cultura mundial? Já há uma estimativa de perda US$ 5 bilhões na indústria global. Tem um bloqueio das atividades na Itália, uma das indústrias mais potentes de consumo cultural em termos de patrimônio histórico. Os danos que esse vírus vai causar pro setor cultural serão maiores proporcionalmente do que no resto da economia. A cultura vai sofrer mais do que os outros setores. Por quê? Boa parte das atividades culturais é de interação, de público e aglomerações. Temos shows, museus, sítios de patrimônio histórico, o próprio cinema. As artes performáticas implicam em contato e aproximação das pessoas. As indústrias culturais do mundo estão vivendo um dos maiores desafios que já tiveram. E vale ver como as tecnologias de informação e comunicação vão ocupar um espaço privilegiado no âmbito dos mercados culturais.
O senhor se refere às empresas de streaming? Sim, estou interessado em ver como o consumo desses serviços vai subir. Olhando para futuro próximo, essa pandemia que a humanidade está enfrentando talvez provoque mudanças estruturais no perfil de consumo cultural. Talvez não volte ao normal tão rapidamente. Essa coisa da migração do show de música para o Spotify, do cinema para plataforma de streaming, que é uma tendência, pode se intensificar. Mas isso pode afetar negativamente o PIB local da cultura, não? Exatamente. Pode haver uma transferência de parte desse consumo para o streaming. Em vez de você ir ao Louvre — que está fechado, aliás —, você pode acessar o acervo dele virtualmente. Isso não impacta a criação de empregos nem o PIB da economia local, vai para um circuito internacional de transferência de renda. É um efeito compensação que não reverbera para o local. Certamente as grandes produtoras de cinema estão revendo seus modelos de negócio de modo a aproveitar mais a internet. Não duvido e até estimo que os próximos lançamentos de cinema irão direto para plataformas. Isso já é uma tendência, mas me preocupa. Por quê?
Neste momento do mundo, haver uma questão de saúde pública que promove o afastamento entre as pessoas é um dos impactos mais negativos do processo. O show, a peça de teatro e o museu geram emprego, renda, PIB em um número muito relevante. Mas também geram empatia, capacidade de reflexão crítica, possibilidade de enxergar o outro. Ter esses canais bloqueados num momento em que há uma divisão muito grande na sociedade em países como EUA, Inglaterra e Brasil é tão nocivo para o bem-estar econômico quanto a diminuição da produção das cadeias produtivas de cultura. São dois lados do impacto negativo: um é na espinha dorsal da sustentabilidade econômica e o outro é a grave descontinuidade do papel da cultura de integrar.
Tem as perdas no mercado asiático...  Sim, especialmente o mercado da China. O cinema é uma atividade que preocupa muito, pois ela implica em proximidade das pessoas em ambiente fechado. Os últimos dados do mercado de cinema da China, por exemplo, mostram um decréscimo grande do consumo de cinema: a queda chega à ordem de 60% a 70% na venda de ingressos esse ano. Nos Estados Unidos isso é um pouco menos acentuado, mas em algumas semanas deve cair mais. As autoridades estão tomando medidas de alto grau de precaução, influenciadas pelo caso da Itália, que foi um país gravemente atingido. Isso sinalizou uma postura muito mais defensiva para outros países.
É possível medir o impacto no Brasil? Essa crise chega num momento de trevas que o setor cultural está vivendo no Brasil. As indústrias culturais brasileiras nos últimos anos estão gravemente ameaçadas. Isso já vem desde o segundo governo Dilma (Rousseff), passando pelo (Michel) Temer, com problemas graves de políticas públicas e financiamento para cultura. Mas então emerge um governo que, além de seguir a mesma tendência de corte de verbas, ataca o setor numa disputa ideológica. Aí tem o pior dos mundos: o governo transforma o setor cultural num inimigo. Há uma grave diminuição do Fundo Nacional de Cultura. Há descontinuidade de projetos da Lei Rouanet. E o consumo privado com a crise também diminui, as pessoas vão menos ao cinema, compram menos livros... Há uma série de elementos que trazem essa tempestade perfeita, como os economistas chamam, para o setor cultural brasileiro. E agora o segmento está perdendo talvez sua única fonte de sustentabilidade econômica, que é o público. Como reverter essa perdas? Entendo que o Brasil precisa urgentemente incluir o setor cultural num plano de auxílio econômico que deve combater os efeitos do coronavírus. Vários países já estão fazendo isso. Os EUA já prometeram U$ 1 trilhão para reativar ou preservar ativos econômicos. A França já está fazendo isso no setor cultura. Inclusive em países marcadamente liberais como o Reino Unido. Eles entendem claramente que as indústrias criativas têm muito vigor econômico.