Seis meses após a publicação de novas regras de patrocínio, produtores de
projetos tradicionais começam a abrir mão dos incentivos
POR ANA PAULA SOUSA | 11.08.2022 23H18

Na semana passada, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
anunciou que fará a 46ª edição, em outubro, sem a Lei Federal de
Incentivo à Cultura – a Lei Rouanet – e lançou um programa de patronos.
Também o Festival de Inverno de Campos do Jordão, encerrado no
último domingo de julho, viabilizou a 52ª edição sem a lei.


“Nosso escritório é conhecido por sempre dizer: ‘Vamos lá!’ Pela primeira
vez, me vejo dizendo: ‘Desta vez, não vai dar’“, conta a advogada Cristiane
Olivieri, resumindo o estado de espírito do setor.
Cristiane observa que, para além dos empecilhos concretos, as INs
criaram uma enorme insegurança jurídica – inclusive, porque várias
regras não são claras. “Algumas deliberações parecem, simplesmente, ter
problemas de redação. Mas quem vai arriscar?“, pergunta.


Se há muito tempo os pequenos produtores penam para lidar com as
exigências e as prestações de contas da lei, hoje também as instituições
maiores, que contam com grandes escritórios de advocacia e equipes
contábeis, se sentem assim.


Para a Mostra, um evento anual, sem estrutura Nxa, caminhar por esse
labirinto legal tornou-se inviável. “Na secretaria, ninguém dá clareza de
nada. Há meses, prometem publicar novas regras para resolver algumas
coisas. Prometem para dentro de 30 dias, mas nunca sai”, diz Renata de
Almeida, diretora da Mostra.


A IN prevê, por exemplo, que um evento do porte da Mostra ofereça,
como contrapartida ao uso da lei, um curso de 40 horas, presencial, para
mil pessoas, sendo 50% delas “estudantes e professores de escolas
públicas, crianças em orfanatos ou idosos em casas de repouso”.


“Sempre Nzemos ações de formação, mas algo nessa proporção escapa da
nossa capacidade, e é impossível obrigar as pessoas a frequentar cursos ou
salas de cinema, mesmo gratuitos”, pontua Renata. Para não correr o risco
de se comprometer a entregar ações irrealizáveis, ela fará o evento com os
recursos diretos aportados por Sesc, Spcine e Projeto Paradiso e com o
programa de patronos, que oferece cotas a partir de 2 mil reais.
Chai Rodrigues, produtora do grupo de circo e teatro LaMínima, cuja
estrutura faz jus ao nome, não nega que, apesar de as oNcinas integrarem,
há anos, a rotina da companhia, as novas demandas a inquietam.
“Estamos falando de um projeto artístico, não pedagógico. Se isso não for
bem dosado, podemos ter uma distorção”, diz, ecoando a diretora da
Mostra.


O LaMínina está em turnê por nove cidades de Minas Gerais e do
Espírito Santo, em um projeto de celebração dos 25 anos do grupo (ler
texto à pág. 56) contemplado, via Lei Rouanet, por um edital da Vale. O
périplo enfrentado por eles é revelador do desmonte da estrutura de
fomento – processo do qual as duas INs são o cume.


Após ser selecionada no edital, no segundo semestre de 2021, a
companhia tinha três meses para obter o número do Programa Nacional
de Apoio à Cultura (Pronac) – registro oNcial do projeto no governo. O
tempo corria, e nada.


Passados mais de dois meses, veio o aguardado retorno: o projeto tinha
sido arquivado por causa de um erro. O número de apresentações
divergia em dois campos. “Corrigimos e pedimos o desarquivamento.
Levou mais de um mês para o pedido ser processado”, conta a produtora.
Um dos artistas do LaMínima, Fernando Sampaio, chegou a aproveitar
uma apresentação em Brasília para ir à sede da Secretaria. Deu com a cara
na porta.


“Diariamente, eu mandava e-mails para todos os endereços disponíveis
no site”, detalha Chai. Aos 45 do segundo tempo, o projeto foi habilitado.
Mas a saga não acabava ali. Depois de passar pela Comissão Nacional de
Incentivo à Cultura, rito usual, o projeto teve de ser referendado pelo
secretário de Cultura – exigência criada em um decreto publicado no ano
passado.


Quando o projeto chegou a essa fase, Frias tinha acabado de deixar a
pasta. “Em uma das únicas vezes em que consegui ser atendida por
telefone, uma pessoa me disse: ‘Você precisa ter calma. O secretário tem
muitos projetos para ler. E ele ainda precisa se adaptar’“. Entre idas e
vindas, a companhia, já no limite do prazo, pôs, na semana passada, o pé
na estrada.


Outro ponto sensível diz respeito aos Planos Anuais, que podem – ou
podiam – ser apresentados por instituições com atividades contínuas e
perenes. As INs tiraram essa possibilidade, por exemplo, dos museus
privados – caso do Masp – e estabelecem que todos os planos terão de ser
submetidos ao secretário. “Muitas instituições têm os planos anuais
vigentes (alguns apresentados em 2019). Mas, em 2023, vamos ter uma
crise de proporções inimagináveis”, antecipa Cristiane.


Marcelo Lopes, diretor-executivo da Fundação Orquestra Sinfônica do -
Estado de São Paulo (Osesp), enviou o plano de 2023 para a Secretaria e
aguarda a avaliação. “As alterações implicam uma nova estruturação de
despesas e menor rexibilidade de atividades, sobretudo fora da Sala São
Paulo”, explica. “Ainda não sabemos, por exemplo, como realizar os
festivais de Verão e Inverno de Campos do Jordão e os concertos
itinerantes, fundamentais para a circulação do produto cultural.”


Outra bomba-relógio é que, desde fevereiro, a publicação dos números de
Pronac tem ocorrido a conta-gotas. Sem Pronac, não há captação. E, como
se sabe, sem captação de recursos incentivados, diNcilmente há
patrocinador.


“A lei foi criada para mostrar para a iniciativa privada que valia a pena
investir em cultura”, lembra Renata, retomando a origem do programa
pensado por Sérgio Paulo Rouanet no início dos anos 1990. “Mas, como
o investimento sempre foi 100% incentivado, acho que a lei passou o
recado errado: só vale a pena investir em cultura com renúncia fiscal de
100%.”

Texto Original Site Carta Capital