Lives, bebida alcoólica e Conar

 

Natalia Rollemberg Advogada associada a Olivieri & Associados, com pós-graduação em Propriedade Intelectual pela Universidade de Lisboa, e em Fashion Law pela Faculdade Santa Marcelina

  Desde o começo da quarentena, diversas lives foram realizadas por artistas de dentro das suas casas como forma de se adaptar ao momento atual, uma vez que o segmento cultural e de entretenimento sempre dependerão do público ao vivo, e serão um dos últimos a retomarem as atividades presenciais. Nesse cenário, as lives de músicas sertaneja tiveram lugar de destaque principalmente em razão do grande número de visualizações, do volume das arrecadações de alimentos para doação e das horas de duração. No entanto, após a apresentação do cantor Gusttavo Lima, transmitida pelo YouTube e patrocinada pela empresa Ambev, outro ponto passou a ser colocado em foco: o consumo de bebida alcoólica pelos artistas durante as exibições. O Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) abriu representação ética contra Gusttavo Lima e a Ambev em razão das ações publicitárias realizadas nos shows "Live Gusttavo Lima - Buteco em Casa" e "Buteco Bohemia em Casa" pela ausência de mecanismos de restrição de acesso ao conteúdo das lives por menores de idade, e também pela repetida apresentação de ingestão de cerveja, em potencial estímulo ao consumo irresponsável do produto. A ação do Conar gerou debate, principalmente se deveria uma live ser entendida como ação publicitária e se o cantor poderia ser impedido de consumir bebida alcoólica dentro da sua própria casa. O surgimento de questionamentos é inevitável, uma vez que o formato de apresentação no estilo “live de casa” representa um formato relativamente novo. As lives, assim como muito dos conteúdos compartilhados no ambiente digital, principalmente por meio de redes sociais, muitas vezes parecem não se encaixar perfeitamente nas normas existentes. A forma de gerar conteúdo, de se comunicar com o público e de veicular propagandas mudam a todo momento, no compasso dos desejos e necessidades do público, e em função da criatividade dos profissionais de comunicação. Mas, a análise do “animus” e da essência real desses novos formatos permite avaliar quais princípios, normas e regulamentos devem ser aplicados em cada situação. No caso das lives patrocinadas, fica caracterizado o intuito de propaganda embutido nas apresentações artísticas. Claramente, ainda que não seja o formato clássico de influenciar e vender produto, é um modelo de propaganda atual e contemporâneo, mas com uma abordagem mais sutil e natural. Nesse ponto, a essência que caracteriza uma campanha publicitária está presente, inclusive com a exposição intensiva da marca. Por isso, os procedimentos e normas aplicáveis à publicidade em geral devem ser adotados para esse tipo de ação também. No caso específico das ações publicitárias de empresas de bebida alcoólica, as regras são ainda maiores, uma vez que se trata de produto proibido para menores de idade. Assim, como forma de proteção desse público, normas devem ser respeitadas como, por exemplo, a inclusão obrigatória da expressão “é proibida a venda de bebida alcoólica para menores de 18 anos”, além do bloqueio de acesso ao conteúdo online por menores de idade. Tais regras não tem a finalidade de impedir a propaganda de bebidas alcoólicas ou o patrocínio de empresas desse segmento, mas sim de equilibrar essa relação e proteger as crianças e jovens, que representam uma grande parte do público de música, principalmente no ambiente digital. A situação é diferente quando o conteúdo é gerado de forma espontânea pelo artista. Uma apresentação artística ou a exposição de um produto que não tenha nenhum tipo de patrocínio ou permuta, não deverá ser compreendido como uma ação publicitária, mas apenas como um conteúdo voluntário. Nesse cenário, não caberá uma fiscalização do Conar no caso do consumo intenso de bebida alcoólica, por exemplo, mas talvez ocorra uma desaprovação pelo público, a qual, principalmente no ambiente digital, pode ser ainda mais dura. Assim, é possível notar que apesar de, as vezes, parecer difícil a definição das regras e procedimentos aplicados ao universo digital, é inverídica a afirmação de que “internet é terra de ninguém”. Pois, por mais que os formatos e modelos mudem, há sempre uma parte essencial que permanece em toda forma de comunicar e entreter que se encaixa nas regulamentações em vigor.