MARIANA FILGUEIRAS para O GLOBO 08/11/2014
Ainda não se sabe quem assumirá o Ministério da Cultura no novo mandato de Dilma Rousseff — Marta Suplicy anunciou nesta semana que deixará a pasta, e as especulações sobre quem ocupará a vaga giravam em torno de quatro nomes até a tarde de ontem: Juca Ferreira (ex-ministro, atual secretário municipal de Cultura de São Paulo e coordenador da área cultural na campanha que reelegeu a petista); Angelo Oswaldo (presidente do Instituto Brasileiro de Museus e amigo de longa data da presidente); Marco Aurélio Garcia (assessor especial da Presidência); e Jandira Feghali (deputada federal reeleita e ex-presidente da Comissão Mista de Cultura do Congresso). Seja quem for, o escolhido terá uma série de promessas a honrar. Apesar de apresentar suas propostas em apenas um parágrafo no programa de governo, Dilma detalhou as ideias para a área em entrevista publicada pelo GLOBO no dia 21 de setembro. São cinco as principais promessas: ampliar o vale-cultura; implantar o Sistema Nacional de Cultura; aumentar o orçamento e fortalecer o Fundo Nacional de Cultura; ampliar o programa Cultura Viva; e rever a Lei Rouanet. A pedido do GLOBO, dois especialistas na área, o historiador, idealizador do programa Pontos de Cultura e ex-coordenador de Cultura na campanha de Marina Silva, Célio Turino, e a assessora jurídica e consultora de projetos culturais Cristiane Olivieri, autora do “Guia brasileiro de produção cultural”, avaliaram as propostas. Para eles, o aumento do orçamento — a PEC 150 — é a causa mais urgente. E também a mais complexa, sobretudo diante de um ano que se anuncia difícil para as finanças: “É preciso um ministro forte, com vontade política, que brigue pelo aumento”, alerta Cristiane. Para que a maioria das promessas vá adiante, afinal, há que se convencer o Congresso. 1) Ampliação do vale-cultura “O vale-cultura é um dos mais inovadores instrumentos de democratização e acesso ao consumo cultural, sendo estudado em vários países. Ele está incluindo milhares de trabalhadores no universo de livros, teatros, cinema, museus, antes restritos a poucos. O vale-cultura vem se consolidando e já aparece na pauta de reivindicação dos trabalhadores em seus dissídios, mostrando que é uma porta que se abre e deve ser alargada.” Implantado em 2013, o benefício atende hoje 255.582 pessoas, mas tem capacidade para 42 milhões, segundo dados do Ministério da Cultura (MinC). O benefício, um cartão pré-pago, de R$ 50 por mês, pode ser usado para comprar bens culturais em geral. Para isso, a empresa deve se cadastrar no MinC, que, em contrapartida, a isenta dos encargos sobre o valor concedido, além de permitir que ela abata até 1% do imposto de renda devido. A prioridade é atender trabalhadores que ganham até cinco salários mínimos. — A ampliação depende exclusivamente da articulação do MinC, para conseguir mais adesão de empresas. O vale-cultura não é importante só pelo acesso de pessoas a bens culturais, mas também por inverter a lógica do financiamento. Ajuda cidades menores, áreas de periferia, companhias de teatro pequenas, por exemplo, a não depender só do patrocínio — afirma o historiador Célio Turino. Já a consultora Cristiane Olivieri acredita que as dificuldades para ampliar o benefício vão além do governo: — Depende das empresas. O que o governo pode fazer é estimular as estatais à adesão e também o que foi feito no início da Lei Rouanet, ainda com Fernando Henrique Cardoso e o então ministro Francisco Weffort: uma campanha maciça nas empresas, convencendo-as a adotar o benefício. 2) Implantação do Sistema Nacional de Cultura “Uma medida central será implantar o Sistema Nacional de Cultura, incorporando estados, municípios e Distrito Federal a uma estrutura de alcance universal (em que cada município e estado tenha órgãos para gerir recursos e políticas do governo federal para a cultura). Para sustentá-lo com a estabilidade necessária, é preciso elevar os valores do Fundo Nacional de Cultura para fazer dele um instrumento efetivo de financiamento da diversidade cultural.” Uma das metas do Plano Nacional de Cultura do MinC, o Sistema Nacional de Cultura (SNC) é uma maneira de organizar a cultura da mesma forma que o Sistema Único de Saúde (SUS) estruturou a saúde. O SNC prevê que todas as esferas da federação criem órgãos gestores da cultura, como conselhos de política cultural, conferências de cultura, planos de cultura, sistemas de financiamento, sistemas de informações e indicadores culturais, programas de formação na área etc. A adesão ao Sistema Nacional de Cultura se dá voluntariamente. Os estados e municípios que concordam em integrar-se ao SNC assinam com a União o Acordo de Cooperação Federativa, que estabelece os compromissos entre as partes. Hoje, apenas seis integram o sistema: Acre, Bahia, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Sul e Rondônia. — O SNC depende sobretudo de mais orçamento para a Cultura — diz Turino. Cristiane Olivieri concorda: — É fundamental implantar o SNC, para que o produtor cultural não precise apresentar projetos separadamente em cada esfera. O principal entrave à implantação é a autonomia da decisão. Atualmente, técnicos de Brasília que não conhecem a realidade dos municípios é que decidem para onde vão os recursos. Em vez disso, é preciso deixar cada esfera decidir seus projetos prioritários. 3) Aumento do orçamento e mais força para fundo nacional de cultura “A PEC 150 está em debate no Congresso. O governo quer fazer crescer a fatia da Cultura e me comprometo com um crescimento escalonado. O financiamento da Cultura no Brasil vem sofrendo distorções com o aumento da renúncia fiscal via Lei Rouanet, em detrimento da ampliação do Fundo Nacional de Cultura. Nosso objetivo é fortalecer o fundo, para contemplar todas as áreas da cultura brasileira.” No primeiro ano do governo Dilma (2011), o orçamento da Cultura foi de R$ 2,1 bilhões. No ano seguinte, chegou a R$ 3,2 bilhões. Em 2013, alcançou R$ 3,3 bilhões, recuando para R$ 3,2 bilhões neste ano. Nesse período, oscilou em torno de 0,13% do Orçamento da União (contra cerca de 0,8% nos governos Lula). A Proposta de Emenda Constitucional 150 (PEC 150) prevê elevar verbas da cultura para 2% do orçamento. — Ele deveria ao menos voltar a 0,8%. E a meta deveria ser fechar 2016 com a PEC 150. Só assim pode-se colocar o Sistema Nacional de Cultura em funcionamento, e a Cultura no protagonismo — diz Célio Turino. Para Cristiane Olivieri, essa deverá ser a maior dificuldade do ministério: — O problema é o Congresso querer. Trabalhar pela aprovação da PEC 150 deveria ser o primeiro compromisso do próximo ministro. Com ela, tudo respira melhor e começa a andar. E, para fortalecer o Fundo Nacional de Cultura, é fundamental aumentar o orçamento. Para isso, é preciso ministro forte e vontade política. Um ministro que assuma a paternidade do aumento. A Cultura, tida como prima pobre, ainda não é vista como estratégica ao desenvolvimento. Para Turino, o Fundo Nacional de Cultura (investimento direto em projetos) deveria ter, até 2016, orçamento equivalente ao da Lei Rouanet (que disponibilizou R$ 647 milhões apenas de janeiro a outubro). 4) Ampliação do programa Cultura Viva “Ampliar o Programa Cultura Viva (política pública que reconhece e fomenta os Pontos de Cultura, entidades sem fins lucrativos que desenvolvem ações culturais continuadas) para abrir espaço à criatividade de comunidades que não são contempladas pelo mercado e que exigem sensibilidade institucional do Estado para se expressar. É momento também de avançar em uma política para as artes, que permita atuar sobre produção, distribuição e acesso.” O Programa Cultura Viva abrange, hoje, 4.040 pontos de cultura, sendo 172 “pontões”, além de ações culturais que os sustentam. De 2004 a 2015, o programa terá consumido R$ 769 milhões. Para Turino, não basta ampliar o programa, mas deve-se retomar sua importância. — O programa foi esvaziado. Apenas parte dos pontos recebe recursos, que diminuíram muito. É preciso uma resolução que permita prestar contas por resultados, não por dados burocráticos. Para manter uma orquestra numa comunidade, por exemplo, em vez de checar produção, apresentações etc., o ponto de cultura tem que provar como pagou tal e tal tarifa bancária. Isso paralisou a transferência de verbas. Outra sugestão seria rever recursos. O repasse aos pontos segue congelado desde 2004 em R$ 60 mil/ano, quando seriam necessários ao menos R$ 120 mil/ano. Duas dezenas de países estão implantando programas semelhantes. E onde foi criado ele está definhando. Para Cristiane Olivieri, as promessas estão focadas em questões financeiras, quando melhorias estruturais seriam mais facilmente cumpridas: — Política não é só dinheiro. Firmar parcerias com estados e municípios ou universidades pode ser mais proveitoso. Não custa fazer um levantamento de espaços ociosos em universidades, criar uma agenda unificada e otimizá-los. É preciso ter pensamento menos financeiro. 5) Reforma da Lei Rouanet “A Lei Rouanet foi criada com base em um tripé: mecenato (por meio de renúncia fiscal), Fundo Nacional de Cultura e fundos de investimento. Ao longo dos anos houve uma excessiva ênfase no mecenato em detrimento dos demais mecanismos. Será necessário recuperar o equilíbrio no financiamento à cultura, fortalecendo o FNC com mais recursos e mecanismos de fomento. Qualquer novo modelo deve garantir que os processos tramitem de forma eficiente.” Em abril deste ano, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou a proposta que reformula a Lei Rouanet (8.313/91). Entre as mudanças previstas, o texto cria o Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Procultura), que moderniza e aumenta a distribuição dos recursos de incentivo ao setor; e aumenta os limites de dedução do Imposto de Renda para as doações feitas a projetos nessa área. Assim, pessoas físicas e jurídicas, em tese, terão mais interesse em investir em projetos culturais, já que os descontos nos impostos chegam a 8%. Outra diferença em relação à atual Lei Rouanet diz respeito à concentração de recursos no eixo Rio-São Paulo. O novo texto inclui mecanismos para descentralizar a destinação das verbas do Fundo Nacional de Cultura. Cada região brasileira deverá receber, no mínimo, 10% dos recursos do fundo, o que fortalece o Norte e o Nordeste. O próximo passo é a votação da proposta no Senado. Os especialistas ouvidos pelo GLOBO concordam que a nova versão é melhor. — A lei está bem melhor, mas a reforma esbarra no mesmo problema do aumento do orçamento: a aprovação do Congresso — resigna-se Cristiane.