Decisão: Cuida-se de suspensão de liminar apresentada pela Procuradoria-Geral da República em face de decisão do Presidente do TJRJ, nos autos de medida de suspensão, mediante a qual suspendeu liminar que havia sido concedida nos autos do Mandado de Segurança nº 0056881-31.2019.8.19.0000 pelo Desembargador Heleno Ribeiro Pereira Nunes (5ª Câmara Cível) sob o seguinte dispositivo: “(...) Desta forma, concede-se a medida liminar para compelir as autoridades impetradas a se absterem de buscar e apreender obras em função do seu conteúdo, notadamente aquelas que tratam do homotransexualismo. Concede-se a liminar, igualmente, para compelir as autoridades impetradas a se absterem de cassar a licença para a Bienal, em decorrência dos fatos veiculados neste mandamus. 2 – Notifiquem-se as autoridades a quem se atribui a prática do ato para que prestem as devidas informações, no prazo legal (artigo 7º, I, da Lei 12.016/2009), e para ciência da liminar deferida”; Narra a PGR que, nos autos do MS nº 0056881-31.2019.8.19.0000, ajuizado perante o TJRJ, em face do Prefeito do Município do Rio de Janeiro e do Secretário Municipal de Ordem Pública do Município do Rio de Janeiro, “buscou-se a concessão de ordem pela qual os impetrados fossem compelidos a não realizar busca e apreensão das obras que tratem do tema do homotransexualismo, além de serem obrigados a não cassar o alvará de licença da “Bienal do Livro” em curso na cidade do Rio de Janeiro entre os dias 30 de agosto a 08 de setembro”. Aponta a Procuradoria-Geral que a causa de pedir do mandamus consistiu na notificação exarada pelos impetrados com o seguinte teor: “(...) Neste sentido, serve esta para notificar a entidade responsável por essa BIENAL DO LIVRO que, na forma da legislação federal e municipal, deverão ser recolhidas as obras que tratem do tema do homotransexualismo de maneira desavisada para o público jovem e infantil, ou seja, QUE NÃO ESTEJAM SENDO COMERCIALIZADAS EM EMBALAGEM LACRADA, COM ADVERTÊNCIA DE SEU CONTEÚDO, sob pena de apreensão dos livros e cassação de licença para a feira e demais que sejam cabíveis.” Finaliza a a narrativa aduzindo que, após a concessão da liminar pelo Desembargador Heleno Ribeiro Pereira Nunes (5ª Câmara Cível) para determinar (i) a abstenção de apreensão das obras “em função do seu conteúdo, notadamente aquelas que tratam do homotransexualismo” e (ii) a abstenção da cassação da licença para a bienal, embasando-se na preservação da liberdade de expressão; a Presidência do TJRJ suspendeu a referida liminar, embasando-se, essencialmente, nos artigos 783 e 794 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA; Lei 8.069/90). Em suas razões, defende a PGR a necessidade de suspensão da referida decisão, uma vez que – defende – estaria por ferir “frontalmente a igualdade, a liberdade de expressão artística e o direito à informação”. Relativamente ao princípio da igualdade, reforça sua argumentação apontando que “o ato da Prefeitura do Município do Rio de Janeiro discrimina frontalmente pessoas por sua orientação sexual e identidade de gênero, ao determinar o uso de embalagem lacrada somente para “obras que tratem do tema do homotransexualismo”. Invoca os Princípios de Yogyakarta referentes à proteção internacional dos direitos humanos relativos à orientação sexual e identidade de gênero e suscita o julgamento da ADI n. 4.275 do Supremo Tribunal, por meio do qual, argumenta, se “reiterou que o direito à igualdade sem discriminações abrange a liberdade de identidade (ou expressão) de gênero”. Aponta que a medida de suspensão concedida na origem configura “censura genérica à abordagem de um determinado tema”, o que estaria por ferir a Constituição de 1988, em seus arts. 5º, IX e 220, § 2º). No ponto aduz: “A Bienal do Livro representa claramente evento no qual os autores e autoras, leitores e leitoras, exercitam tais direitos, que não podem ser cerceados pela alegação genérica de que tratam de tema do homotransexualismo. O Estatuto da Criança e do Adolescente não deve ser aqui invocado, uma vez que o tema em questão não é, per se, ofensivo a valores éticos, morais ou agressivos à pessoa ou à família. Finaliza apontando a urgência na concessão da medida, ante o encerramento da bienal na data de 8/9/19, e evocando o julgamento proferido nos autos da ADI 4.451-REF-MC, Rel. Min. Ayres Britto, na qual se estabeleceu a compreensão de que “não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas”. É o relato do necessário. Decido. De início destaco a competência desta Corte para o exame da presente suspensão, tendo em vista que a celeuma estabelecida na origem se perfaz em torno de diversos princípios constitucionais, dos quais se destaca a liberdade de expressão, o princípio da igualdade e os direitos da criança e do adolescente. Atento ainda à heterodoxia da presente via, compreendo ser o caso de apreciação do feito e concessão da medida liminar. Com efeito, a urgência na apreciação é elemento de evidência no caso dos autos, tendo em conta que o encerramento da tradicional bienal do livro se perfaz na data de hoje, 8/9/19, a exigir imediata resposta jurisdicional sob pena de esvaziamento da proteção aos relevantes direitos envolvidos. Caracterizada, ainda, a meu ver, a plausibilidade das alegações. Observo o teor da decisão combatida, nos pontos de fundamentação: “Na hipótese em tela, chegou ao conhecimento da Administração Municipal o fato de que, em ao menos um dos stands expositores da prestigiada feira (Bienal do Livro), se comercializava sem qualquer proteção, esclarecimento ou embalagem apropriada, publicação destinada ao público infanto-juvenil contendo material impróprio e inadequado ao manuseio por crianças e adolescentes, sem os cuidados previstos nos artigos 78 e 79 do Estatuto da Criança e do Adolescente. A leitura dos dispositivos é esclarecedora: Art. 78. As revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com a advertência de seu conteúdo. Parágrafo único. As editoras cuidarão para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca. Art. 79. As revistas e publicações destinadas ao público infanto-juvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família. O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao esmiuçar o comando do art. 227 da Constituição, delineia sistema de proteção integral da criança e do adolescente, de forma a lhes garantir o exercício de todos os direitos fundamentais e sociais inerentes à pessoa humana, assegurando, as oportunidades e facilidades para lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. O controle das publicações vocacionadas à circulação entre o público infanto-juvenil é elemento crucial dessa política pública exigida pelo constituinte, razão pela qual há menção específica nos dispositivos mencionados. Tem-se que o caso concreto atrai a incidência do art. 78, caput, e do art. 79, cujo conteúdo perpassa por conceitos jurídicos indeterminados, ampliando o grau de exigência para a fundamentação judicial (art. 489, § 1º, II, do Código de Processo Civil). Vê-se que o legislador não proíbe, de forma absoluta, a circulação de material impróprio ou inadequado para crianças e adolescentes, mas tão somente exige comprometimento com o dever de advertência, para além de dificultar acesso ao seu interior, por meio do lacre da embalagem (art. 78). Posteriormente, ao tratar, especificamente, de publicações voltadas para o público protegido pelo Estatuto, que constitui coletividade vulnerável, repele qualquer conteúdo afrontoso a valores éticos, morais ou agressivos à pessoa ou à família. É inegável que os relacionamentos homoafetivos vem recebendo amparo pela jurisprudência pátria, notadamente dos tribunais de cúpula, o que corroboraria o afastamento da vedação do art. 79, ao menos em parte. Contudo, também se afigura algo evidente, neste juízo abreviado de cognição, que o conteúdo objeto da demanda mandamental, não sendo corriqueiro e não se encontrando no campo semântico e temático próprio da publicação (livro de quadrinhos de super-heróis que desperta notório interesse em enorme parcela das crianças e jovens, sem relação direta ou esperada com matérias atinentes à sexualidade), desperta a obrigação qualificada de advertência, nos moldes pretendidos pelo legislador. Nesse sentido, a notificação realizada pela Administração Municipal visou, a priori, o interesse público, em especial a proteção da criança e do adolescente, no exercício do poder-dever de fiscalização e impedimento ao comércio de material inadequado, potencialmente indutor e possivelmente nocivo à criança e ao adolescente, sem a necessária advertência ao possível leitor ou à família diretamente responsável. Não houve impedimento ou embaraço à liberdade de expressão, porquanto, em se tratando de obra de super-heróis, atrativa ao público infanto-juvenil, que aborda o tema da homossexualidade, é mister que os pais sejam devidamente alertados, com a finalidade de acessarem previamente informações a respeito do teor das publicações disponíveis no livre comércio, antes de decidirem se aquele texto se adequa ou não à sua visão de como educar seus filhos. Tal solução está, assinale-se, prevista em regra específica constante no diploma legal (art. 78 do ECA), sendo de direta aplicabilidade, sem necessidade de discussões calcadas em princípios, dotados de alto grau de abstração. Assim, é possível vislumbrar a plausibilidade das alegações daquele que pleiteia a suspensão - o risco de lesão à ordem pública. Configurados o manifesto interesse público e a grave lesão à ordem pública que a decisão judicial impugnada está a causar, há de ser deferido o pedido de suspensão, com fundamento no artigo 4º da Lei nº 8.437/92”. Do que se infere do decisum, amparado na compreensão de que livros de quadrinho não possuiriam “relação direta ou esperada com matérias atinentes à sexualidade”, findou por estabelecer relação entre eventual conteúdo homoafetivo de publicações destinadas ao público infanto-juvenil com o “comércio de material inadequado, potencialmente indutor e possivelmente nocivo à criança e ao adolescente”, para, então, aplicar a tais publicações as vedações insertas nos arts. 78 e 79 do ECA. É decorrência direta do princípio da legalidade e dos direitos de liberdade que a interpretação das vedações legais aos direitos fundamentais se perfaça sob teleologia estrita. Observo, assim, de início, que o art. 78, que comporta a maior restrição à forma de comercialização de publicações escritas, não se destina a publicações voltadas ao público infanto-juvenil, uma vez que expressamente regula a forma de exposição do “material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes” e, assim, aponta a necessidade de que sejam “comercializadas em embalagem lacrada, com a advertência de seu conteúdo”, apontando ainda que “as editoras cuidarão para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca”. Já o art. 79 do ECA, este sim voltado a regular as “publicações destinadas ao público infanto-juvenil”, busca ser taxativo em sua proibição, definindo que “não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições”, e, ainda, que deverão “respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família”. Não há, portanto, como extrair do dispositivo legal voltado às publicações do público infanto-juvenil (art. 79 do ECA), correlação entre publicações cujo conteúdo envolva relacionamentos homoafetivos com a necessidade de “obrigação qualificada de advertência”. Referida obrigação que se localiza apenas para as publicações que, por si, são impróprias ou inadequadas para o público infanto-juvenil (art. 78 do ECA), não pode ser invocada para destacar conteúdo que não seja, em essência, dotado daquelas características, sob pena de violação imediata ao princípio da legalidade. No caso, a decisão cuja suspensão se pretende, ao estabelecer que o conteúdo homoafetivo em publicações infanto-juvenis exigiria a prévia indicação de seu teor, findou por assimilar as relações homoafetivas a conteúdo impróprio ou inadequado à infância e juventude, ferindo, a um só tempo, a estrita legalidade e o princípio da igualdade, uma vez que somente àquela específica forma de relação impôs a necessidade de advertência, em disposição que – sob pretensa proteção da criança e do adolescente – se pôs na armadilha sutil da distinção entre proteção e preconceito. De outro lado, não há que se falar que somente o fato de se tratar do tema “homotransexualismo” se incorra em violações aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. Em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito à união civil para casais formados por pessoas do mesmo sexo, os quais passaram a ter os mesmos direitos dos casais heterossexuais (ADI nº 4.277 e ADPF nº 132). Como destacado pelo Ministro Ayres Britto, relator desses processos, o art. 3º, inciso IV, da Constituição Federal veda qualquer discriminação em virtude de sexo, raça ou cor, não se podendo, portanto, discriminar ou diminuir quem quer que seja em função de sua preferência sexual. Vide ementa: “1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir “interpretação conforme à Constituição” ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação. 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos”. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana “norma geral negativa”, segundo a qual “o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”. Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea. 3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas. 4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”. A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no § 3º do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de 1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia “entidade familiar”, não pretendeu diferenciá-la da “família”. Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado “entidade familiar” como sinônimo perfeito de família. A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do § 2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem “do regime e dos princípios por ela adotados”, verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. 5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO. Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição. 6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.” Ademais, o regime democrático pressupõe um ambiente de livre trânsito de ideias, no qual todos tenham direito a voz. De fato, a democracia somente se firma e progride em um ambiente em que diferentes convicções e visões de mundo possam ser expostas, defendidas e confrontadas umas com as outras, em um debate rico, plural e resolutivo. Nesse sentido, é esclarecedora a noção de “mercado livre de ideias”, oriunda do pensamento do célebre juiz da Suprema Corte Americana Oliver Wendell Holmes, segundo o qual ideias e pensamentos devem circular livremente no espaço público para que sejam continuamente aprimorados e confrontados em direção à verdade. Além desse caráter instrumental para a democracia, a liberdade de expressão é um direito humano universal – previsto no artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948 –, sendo condição para o exercício pleno da cidadania e da autonomia individual. A liberdade de expressão está amplamente protegida em nossa ordem constitucional. As liberdades de expressão intelectual, artística, científica, de crença religiosa, de convicção filosófica e de comunicação são direitos fundamentais (art. 5º, incisos IX e XIV) e essenciais à concretização dos objetivos da República Federativa do Brasil, notadamente o pluralismo político e a construção de uma sociedade livre, justa, solidária e sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, incisos I e IV). A liberdade de expressão é um dos grandes legados da Carta Cidadã, resoluta que foi em romper definitivamente com um capítulo triste de nossa história em que esse direito – dentre tantos outros – foi duramente sonegado ao cidadão. Graças a esse ambiente pleno de liberdade, temos assistido ao contínuo avanço das instituições democráticas do país. Por tudo isso, a liberdade e os direitos dela decorrentes devem ser defendidos e reafirmados firmemente. O Supremo Tribunal Federal tem construído uma jurisprudência consistente em defesa da liberdade de expressão: declarou a inconstitucionalidade da antiga lei de imprensa, por possuir preceitos tendentes a restringir a liberdade de expressão de diversas formas (ADPF 130, DJe de 6/11/2009); afirmou a constitucionalidade das manifestações em prol da legalização da maconha, tendo em vista o direito de reunião e o direito à livre expressão de pensamento (ADPF 187, DJe de 29/5/14); dispensou diploma para o exercício da profissão de jornalismo, por força da estreita vinculação entre essa atividade e o pleno exercício das liberdades de expressão e de informação (RE 511.961, DJe de 13/11/09); determinou, em ação de minha relatoria, que a classificação indicativa das diversões públicas e dos programas de rádio e TV, de competência da União, tenha natureza meramente indicativa, não podendo ser confundida com licença prévia (ADI 2404, DJe de 1/8/17) - para citar apenas alguns casos. Forte nestes fundamentos, tenho que a decisão de origem viola a ordem jurídica, e, no mesmo passo, a ordem pública, razão pela qual compreendo ser o caso de sua suspensão. Pelo exposto, defiro a liminar, para conceder a suspensão da decisão da Presidência do TJRJ, nos autos da Suspensão de Segurança nº 0056881-31.2019.8.19.0000, a qual havia suspendido a decisão do Desembargador Heleno Ribeiro Pereira Nunes, nos autos do mandado de segurança de mesmo número. Publique-se. Intime-se. Brasília, 8 de setembro de 2019 Ministro Dias Toffoli Presidente Documento assinado digitalmente (STF - MC SL: 1248 RJ - RIO DE JANEIRO, Relator: Min. Presidente, Data de Julgamento: 08/09/2019, Data de Publicação: DJe-197 11/09/2019) Acesse a medida cautelar analisada: SL1248 – MEDIDA CAUTELAR – Rcl36742